Pois quanto te olho de relance, já não
consigo falar:
a língua se me quebrou e um subtil
fogo de imediato se pôs a correr debaixo da pele;
não vejo nada com os olhos, zunem-me
os ouvidos;
o suor escorre-me do corpo e o tremor
me toma toda. Fico mais verde do que a relva
e tenho a impressão de que por pouco
que não morro. (vv.7-16)36 [1]
Talvez você nunca tenha ouvido o termo “sáfica”, mas com certeza está familiarizado com “lésbica”. Ambos se referem a relações homoafetivas entre mulheres e têm como origem etimológica a poeta Safo (630 a.C.), que viveu na Ilha de Lesbos da Grécia Antiga. Hoje, tal figura é tomada como referência da comunidade lésbica, em razão de seus poemas que exaltam o erotismo e o amor feminino, sendo símbolo da lesbianidade. Porém, diante de todo o caminho temporal e espacial percorrido pelos termos, é necessário resgatar a Safo da Antiguidade, inserida em seu contexto sociocultural, para, assim, compreender a força de seu nome e o porquê de ter sobrevivido por mais de dois milênios.
Com exceção de poucos fragmentos, somente um poema de Safo é conhecido por completo, e é justamente esse o ponto que torna nebulosa a figura da poeta. Muito pouco do que foi produzido por ela sobreviveu à ação do tempo e do homem, sua biografia é pouco concreta. O que se sabe é que, contrariando a tradição grega da intelectualidade exclusivamente masculina, Safo constitui em Lesbos um centro de iniciação voltado para mulheres, em sua maioria virgens, antes do matrimônio. Neste centro, as mulheres se imergiam em dança, arte, música e poesia. Sua obra poética, produzida em um contexto de oralidade, tinha por finalidade ser cantada junto ao som da Lira[2], um dos motivos pelo qual não se tem acesso à sua obra completa. Os temas principais de sua poesia eram o próprio ato de cantar, o casamento e o mundo feminino - seus detalhes, delicadezas e erotismo. Tudo narrado por um eu-lírico declaradamente feminino: observa-se “me tremo toda” no poema citado, por exemplo, constituindo relações homoafetivas.
A nebulosidade da figura de Safo abre brechas para a imaginação, originando diversas Safos ao longo da história. É dizer: cada época possui uma concepção própria do mundo e, assim, reinterpreta histórias e personagens históricos, adequando-os ao seu contexto histórico, social e cultural. E não foi diferente com Safo, que teve seus poemas destruídos na Idade Média, mas foi representada como amante de poetas gregos em comédias na Belle Époque parisiense, e, hoje, dá nome a coletivos de mulheres lésbicas.
Observa-se a quantidade de releituras ao longo do tempo; por isso, a presença do homoerotismo na obra de Safo não pode ser olhada sob as lentes da cultura em que vivemos, afirmando sua lesbianidade e concebendo-a nos moldes atuais. É o que chamamos, no estudo da História, de anacronismo: a atribuição de concepções, sentimentos ou ideias, à uma época que não lhes pertence; um erro de cronologia; uma projeção dos ideais presentes para o passado.
Não é dizer que Safo era heterossexual. Tampouco dizer que era lésbica. A questão é que tais concepções são contemporâneas e não existiam na Grécia Arcaica: o amor, dito eros, era uma pulsão de desejo que podia se dar tanto entre sexos diferentes como iguais. As relações eróticas do mesmo sexo eram parte constituinte da sociedade, praticadas em muitos rituais de socialização e iniciação. Dessa forma, é possível afirmar que Safo e suas jovens discípulas mantivessem relações eróticas, mas não as definir a partir de um juízo contemporâneo; uma vez que ser lésbica atualmente é resistir aos moldes da sociedade patriarcal, machista e heterossexual, enquanto que manter relações homoeróticas na Antiguidade era, inclusive, um dos passos de preparação para o casamento (com o sexo oposto).
Então, se não podemos dizer que Safo foi um ícone lésbico da Antiguidade, o que ela representa? Por que ainda é considerada revolucionária? Primeiro, deve-se considerar que Safo teve grande reconhecimento como artista em sua época, sendo até mesmo representada em cerâmica - algo raro para mulheres -, o que contribuiu para a construção de seu legado.
Além disso, ela é revolucionária justamente pela criação do centro de iniciação onde era mentora de jovens mulheres, guiando-as pelo mundo cultural, intelectual, artístico e inclusive amoroso. A referência às mulheres de Lesbos é da figura feminina que está fora do ambiente domiciliar – talvez porque ainda não se casou, talvez por outras razões menos simples. Lesbiar seria, portanto, deixar o plano domiciliar e adentrar o da cultura, sob influência feminina e rodeada dela.
Por fim, os poemas de Safo apresentam uma concepção particular do amor. À época, a relação amorosa não seguia os parâmetros de reciprocidade e o casamento heterossexual seguia os termos da dominação masculina. O amor na poesia, majoritariamente versado por homens, atendia a esses parâmetros. Safo é subversiva a essa ordem quando, em seus textos, o amor clama por mutualidade. Ela constrói seu erotismo fora da esfera masculina de dominação e busca vivências eróticas igualitárias e recíprocas.
Consciente do anacronismo em projetar a luta lésbica atual para a Safo da Antiguidade, não se deve abandonar a figura da poeta como importante personagem histórico. Talvez a Safo de hoje, símbolo lésbico, esteja muito distante da Safo da Antiguidade, porém ela nos deixa, com seus poemas e sua história, o legado da visão do amor feminino que procura alternativas à dominação masculina.
Uns dizem que é uma hoste de cavalaria, outros de infantaria;
outros dizem ser uma frota de naus, na terra negra,
a coisa mais bela: mas eu digo se aquilo
que se ama. (vv. 1-4)23 [3]
[1] Tradução de Lourenço, 2006, retirado do texto de Brasete
[2] A lira é um instrumento de cordas conhecido pela sua vasta utilização durante a antiguidade. As récitas poéticas dos antigos gregos eram acompanhadas pelo seu som.
[3] Tradução de Lourenço, 2006, 27
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