Aponte o dedo ao outro e três se apontarão a você. Já ouviu algo do tipo ou já fez o gesto para visualizar e interpretar a afirmação?
É verdade que o que Laura fala sobre Ana diz mais sobre Laura do que sobre Ana. Mas, sempre?
Aquilo que nos incomoda no outro e que nos faz apontar o dedo é um sintoma do que realmente nos incomoda em nós mesmos, mas nem sempre se apresenta de forma explícita e de fácil interpretação.Na verdade, quase nunca. Muitas vezes não temos consciência do que é extraído desse incômodo sintomático. Ou seja, pode não ser tão simples entender o que o nosso desconforto tem a dizer sobre nós, para, dessa forma, nos poupar de situações desagradáveis.
Vamos dizer, por exemplo, que hoje eu fui almoçar na minha sogra e o prato principal era um arroz com frango. O arroz estava levemente cru, gostoso, porém, mal cozido. Eu sei que já cometi tal erro, muitas e muitas vezes, e ainda cometo, mas de qualquer forma, não é fácil sentir empatia e relevar o erro bobo do outro, por mais que eu me reconheça nele.
Por ser cozinheira, essa expectativa do arroz estar no ponto ideal tem muita relevância pra mim, mas você pode pensar em algo do seu contexto que considera simples, do cotidiano, mas que frequentemente cai no seu grau de qualidade. E quando se trata de outra pessoa cometendo o mesmo erro, a compreensão da situação não é tão leve como deveria.
No meu caso, o que eu extraio desse incômodo com o ponto de cozimento do arroz da minha sogra é minha falta de organização, a forma que negligencio a quantidade real de tempo que preciso para fazer as coisas e também a minha falta de comprometimento com as responsabilidades que eu assumo.
É um problema pessoal que escorrega por todas as vias da minha vida adulta. Quando eu coloquei a primeira garfada daquele arroz com frango e senti a firmeza do grão, o que me incomodou, na verdade, não foi o erro culinário, mas perceber que minha sogra, com seus sessenta anos, ainda erra nas coisas triviais da vida e que isso acontece, pela minha interpretação, porque ela também não sabe lidar tão bem com o tempo e gerenciamento da vida. Essa situação me fez pensar na alta possibilidade de eu ter que lidar com os mesmos incômodos por todos esses anos que nos separam e, talvez, muitos outros.
Essa análise da situação toda só veio há alguns minutos, quando percebi que estava me questionando sobre a pesquisa que passei ontem e hoje fazendo, sobre cultura do cancelamento, e que ainda não cheguei onde eu gostaria de focar dentro deste vasto tema, que diz muito sobre saúde mental.
E agora fica o enigma pra você resolver comigo: por que às 19h19 da data limite para entregar esse artigo eu ainda estou em dúvida sobre o que escrever?
Não preciso ser psicanalista para presumir que analisar minha falta de organização, falta de consciência do tempo e falta de comprometimento com o que assumo resolveria o caso. Mas nem todo caso tem um desfecho tão evidente, principalmente se não tiver um motivo sobre o qual eu já esteja consciente, devido à constância que ele aparece nas minhas análises. Logo, quando o que nos incomoda nos outros se apresenta como sintoma de algo que ainda não temos conhecimento sobre nós, fica muito mais difícil autocriticar e perceber que o problema do outro diz muito sobre nós e sobre a estrutura que nos engloba.
Em situações nas quais o acusado está sendo julgado por alguma “pauta quente”, como, por exemplo, a xenofobia - que por conclusões óbvias deixa o assunto muito mais sério do que minha indignação com o ponto do arroz - mas também podemos pontuar que a xenofobia é um problema que afeta toda a estrutura em que vivemos, não é um problema individual.
Eu dei essa volta toda pra explicar o porquê dos cancelamentos interpessoais e virtuais não resolverem o problema em si, só tirarem o sintoma de vista, e é isso que se quer. O cancelamento, para quem não está ciente da pauta, é uma forma de linchar, desmoralizar e ofender membros de uma comunidade por outros membros dessa comunidade, e, dependendo do caso, muito além dela. Natalie Wynn demonstra no vídeo “Canceling” do seu canal “Cointrapoints” 7 tropes[1] de como o cancelamento atua. Eu indicaria o vídeo completo. E também fica a dica pra assistir o vídeo “Setembro Amarelo” da Rita Von Hunty, no qual ela relaciona o tema saúde mental com cancelamento e suicídio. Aqui irei falar um pouco sobre as reflexões apontadas por Natalie, com foco no trope 7, o dualismo: dividir as pessoas boas ou más, como se fosse fácil julgar.
É recorrente dentro da minha mente a busca por determinar um lado moral para cada pessoa que entra na minha vida, virtualmente ou não, me baseando em fatos ou não. Dá para imaginar quantas armadilhas há nesse caminho e o quanto dessa busca é resultado de horas passadas nas redes sociais por dia. Assim, acredito que não há como alcançar uma relação saudável comigo mesma sem fazer as pazes com a ambivalência das outras pessoas, mas pode parecer - e é - uma conclusão bem rasa para um problema de saúde mental que eu mal pontuei.
O problema é o outro, sempre, seja minha mãe ou os colonizadores europeus, o capitalismo ou meu ex-namorado. No entanto, existe uma diferença entre essas comparações: minha mãe e meu ex-namorado pensam e agem dentro de uma estrutura, construída há séculos por colonizadores e capitalistas, e que segue sendo firmada no espaço e no tempo presente. Muitas das ações condenadas nas redes sociais são comportamentos estruturais, que todos nós reproduzimos e, por mais que estabeleçamos lutas, a todo tempo, para vencer os preconceitos e injustiças, a estrutura permanece sendo preconceituosa e injusta.
É bom pontuar que existe sim um lado anti cancelamento que protege a real intenção de preconceituosos, porém existe um linchamento de pessoas baseado em ações bem específicas que geralmente são tiradas de contexto e usadas pra desmoralizar tais pessoas, que já se encontram em posições vulneráveis - seja por classe, cor, origem ou identidade e orientação sexual, ou tudo isso junto. Pessoas marginalizadas que buscam em suas comunidades sua única rede de apoio, e quando essas comunidades se voltam contra elas, se sentem sozinhas, sem novos horizontes de possibilidades na vida, como Rita e Natalie desenvolvem muito bem e com muita profundidade a questão em pauta. O motivo pelo qual esses indivíduos foram rejeitados pela sociedade no geral tem a ver com os problemas estruturais e também a histórica represália contra as mulheres, os periféricos, as pessoas negras, a comunidade LGBTQIA+, os imigrantes, os refugiados e os nativos. E até quando o cancelamento gira em torno da defesa desses grupos, quem acaba sendo “desmascarado” são as pessoas de dentro dessas comunidades, nunca alguém com poder e status foi cancelado e permaneceu cancelado. Porque como sabemos, essas pessoas não fazem parte dos grupos que são cancelados historicamente há séculos, sendo a internet só outra plataforma para essa condenação. Não estamos sabendo nos relacionar nem com o errado, nem com o errante, muito menos com os dois dentro de nós.
Uma relação que não lida com as diferenças, que não abre espaço para conversar e para trocar ensinamentos, estará sempre vulnerável a enfermidades. Como uma dupla, que deve manter as mudanças individuais em paralelo com o amadurecimento da relação a dois, senão, não há chances para um relacionamento saudável e estável. Coletivamente, estaremos sempre instáveis, tentando aproximar nossas condições individuais com a do todo.
Infelizmente, o que vemos hoje é uma estrutura abusiva, que até quando parece estar alinhada com nossos ideais, na verdade está se apropriando das lutas para se manter distante e carregando todo o poder com ela. Minha relação comigo mesma e com os outros só será restaurada quando o coletivo estiver saudável, e definitivamente não é isso que estamos vivendo.
[1] Tropes são recursos repetitivamente usados pra contar uma história. Exemplo: Donzela em perigo que será salva por um homem; Um esbarro no corredor pra que o casal da história se encontre; O bobo da dupla de vilões. (Fonte: TV Tropes por Conversa Cult).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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