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Gabriel Benatti e Renato Murad

Todos os anos da sua vida você passa pelo dia da sua morte sem saber

Uma reflexão sobre a HQ “Daytripper”


“Todos os anos da sua vida você passa pelo dia da sua morte sem saber”. Já parou pra pensar quantas vezes você ficou por um fio de morrer? Quase ser atropelado por um caminhão. Quase ser assassinado reagindo a um assalto. Quase ser atingido por um raio. A frase que abre esta reflexão foi emprestada da canção “Esse filme que passou foi bom” de Letrux, mas coincidentemente sintetiza a narrativa do vencedor do Prêmio Eisner [1] de melhor quadrinho do ano de 2011, “Daytripper”.


Os gêmeos paulistanos Gabriel Bá e Fábio Moon contam a história de Brás de Oliva Domingos, um escritor de obituários de um jornal, que tem como referência o pai, um grande escritor. O livro passa por todas as fases da vida de seu protagonista do primeiro amor ao nascimento de um filho; da juventude viril à solidão de uma separação e contrasta, a todo instante, vida e morte. Nessa espécie de biografia o dia mais feliz da sua vida pode ser também aquele que aparecerá nas páginas do obituário.

A história aplica um “zoom” no dia-a-dia de Brás, podendo soar banal e cotidiana nas primeiras páginas, mas logo os autores traçam um tom absurdista que quebra com qualquer desconfiança. Ocorre que “Daytripper” é uma obra que tem tanto a oferecer em forma quanto em conteúdo. Bá e Moon são capazes de criar um mecanismo, no interior da HQ, que faz de cada capítulo um capítulo final. As seções do livro são nomeadas com a idade correspondente de Brás em diversas etapas de sua vida e não estão organizadas de forma cronológica. Assim, a apresentação da narrativa flutua sobre uma espécie de clima de “sonho”, entremeada sempre por imagens fictícias e simbólicas fruto do talento estético dos irmãos, que se intercalam na produção, convergem no estilo e tornam as cores vibrantes uma constante no livro.

Colaboram para o visual do quadrinho as diversas paisagens brasileiras que fizeram parte da vida de seu protagonista. Apesar de morar em São Paulo, que é, diga-se de passagem, muito bem representada nas imagens de trânsito e fuligem, Brás passa parte do livro conhecendo outros cantos do Brasil. A meninice na casa de seus avós no interior (quando vivencia seu primeiro beijo); a viagem de mochilão que fez com seu melhor amigo à Bahia; uma ida ao litoral para rever os pais já idosos. O uso da aquarela e da paleta com cores difusas reforça a sensação de devaneio. Esses lugares não são meros panos de fundo para o enredo, pois se enlaçam com a reflexão maior do livro e são eventualmente retomados de maneira metafórica. O mais notório dos casos é o cenário do segundo capítulo, as águas revoltas da orla de Salvador, que é reposicionado para representar o vaivém das memórias de Brás, assim como as ondas do mar.


É impossível terminar “Daytripper” sem refletir sobre sua própria vida. Memória ofuscada do passado. Projeção do que está por vir. Lembrar implica em distorcer, não ter nem começo, nem final. Brás teria vivido cada uma daquelas mortes, ou nenhuma delas? São os devaneios de um moribundo ou os sonhos futuros de um jovem adulto envelhecendo? De certa forma quando encerramos uma etapa da vida, assim como Brás, também morremos para nosso passado e nos reinventamos para o que está por vir. Portanto, cada capítulo não passa de mais um período de mudanças, perdas e ganhos. Passar pelo dia da sua morte sem saber é encontrar-se com o único destino comum a cada ser humano; é o acaso manifesto em cada decisão tomada. O livro encontra a sua genialidade por conta da identificação de seu leitor, por sua extrema realidade, ainda que desenhada com traços de sonho.


[1] Prêmio Eisner: de origem norte-americana, o Prêmio Eisner é a premiação mais renomada no mundo das histórias em quadrinho.


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