Na 2ª edição da revista trouxemos as definições das palavras chaves que nos levam ao entendimento da sigla LGBTQIA+. Para este artigo destrinchar um dos termos que se encontra depois do + da sigla, o número "2."
Two-Spirit, em português Dois-Espíritos, é um termo que abrange os entendimentos indígenas ocidentais de gênero e sexualidade. Em 1990, na 3ª Conferência Anual de Nativos Americanos de Gays e Lésbicas, foi proposta uma solução para tornar as inúmeras formas de identidade sexual e de gênero que se relacionam com o que representa o termo Two-Spirit legíveis para as culturas nativas e não nativas[1].
Os Povos Ameríndios[2]), por exemplo, não reconhecem a binaridade de gênero, eles enxergam, aproximadamente, de três a cinco possibilidades para o que definimos por feminino e masculino. Essas pessoas que fogem do espectro determinado pelo sexo[3] recebem diferentes nomes dentro das comunidades nativas e pra ilustrar a diversidade de entendimentos segue alguns exemplos:
Em Lakota, a palavra Winkte (Two be as a woman[4]) se refere às pessoas com duas almas que transcendem os limites do que pode ser considerado feminino ou masculino. Na aldeia Danette, a palavra Nádleehi (Those who transform[5]) se refere a um, dos quatro gêneros reconhecidos, em cada um deles recebe sua própria palavra. Em Ojibwa, designava-se Niizh Manitoag – ou Dois-Espíritos – aqueles que transitavam com a mesma facilidade entre os mundos masculino e feminino.
Além desses, existem muitos outros. Cada comunidade tem sua própria compressão de gênero e diversidade, e é baseada em crenças espirituais específicas de cada cultura.
Estevão Rafael Fernandes, autor do livro “Existe Índio Gay? (...)”, aponta que “dentro de suas tribos essas pessoas desempenham um importante papel político, social e religioso, e que a sexualidade é apenas um desses aspectos.” Tais pessoas são consideradas sagradas ou divinas, ocupando posições importantes como, casamenteiras, curandeiras, visionários, aqueles que trazem mensagens dos espíritos, que passam os conhecimentos ancestrais adiante ou são guerreiros nas linhas de frente de batalhas. Em outras palavras, elas são responsáveis por desempenhar funções tradicionalmente atribuídas às mulheres e aos homens.
Para essas comunidades nativas a sexualidade é interpretada de forma ampla, fluida e cíclica. Onde a masculinidade e a feminilidade não são vistas como opostas, mas complementares.
Outra razão para que o termo Two-Spirit tenha sido adotado em 1990, foram os registros escritos sobre as nações indígenas começarem pelo contato dos europeus cristãos. Os Jesuítas usavam o termo “Berdache” para descrever as pessoas que hoje reconhecemos por Two-Spirit. Berdaj em árabe, Bardaxa na Espanha, Berdache em italiano e francês, em suma, uma palavra de baixo calão que costumava se referir aos escravos, aos meninos que eram mantidos em relacionamentos com homens mais velhos, aos que praticavam sodomia (denotação de sexo anal à bestialidade, como descrito na Bíblia), aos homens que se vestiam de mulheres e mais tarde os antropologistas aplicaram o termo aos ameríndios que assumiam papéis do sexo oposto. Geo Neptune para o canal “Them” completa: “Two-Spirit foi uma tentativa de autodeterminação para atravessar a barreira linguística, já que a língua estrangeira existente foi imposta violentamente aos povos originários, além de ser ofensiva e profundamente colonial e cristã. Os europeus impuseram homofobia, papel de gênero e misoginia sob o pretexto de civilizar os nativos por meio da tradição cristã. Les foi roubado não só suas terras, mas também suas tradições espirituais e modo de viver a respeito das pessoas Two-Spirit.”.
Em 5 de fevereiro de 2020, o presidente Jair Bolsonaro nomeou o ex-missionário evangélico Ricardo Lopes Dias para o comando de um órgão responsável por proteger povos isolados e de contato com a Fundação Nacional do Índio (Funai). Além de sua formação como antropólogo, Dias passou uma década, entre 1997 e 2007, evangelizando indígenas por meio do grupo Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB), fundado em 1953.
No Brasil, o reconhecimento como Two-Spirit segue sendo atacado e as alianças entre povos indígenas LGBTQIA+ que se formaram nos anos recentes seguem lutando pelos seus direitos. O projeto de colonização ainda está em voga, apesar dos cinco séculos que se passaram desde a entrada dos europeus nas Américas.
O Coletivo Tibira (@indigenaslgbtq no Instagram) leva informação sobre a comunidade Two-Spirit do Brasil, como forma de recuperar o que os colonizadores tentam apagar de suas tradições por séculos. É uma identidade resiliente e preciosa que sobrevive através dos ensinamentos ancestrais e vem se repercutindo entre os jovens nativos. Geo Neptune finaliza: “Two-Spirit não é uma forma poética de não-nativos LGBTQ+ se expressarem. É uma tradição sagrada dos primeiros povos desta terra que chamamos Ilha Tartaruga.”[2].
[1] A expressão povos nativos diz respeito aos povos originários ou nascidos em determinado, local mas cuja cultura está ligada ancestralmente a esse lugar. Culturas que existiam antes da expansão da Europa para os restantes continentes do mundo. (Fonte: Infopédia)
[2] Povos nativos americanos;
[3] A construção da identidade a partir da genitália, que determina como cada ser deve se comportar no mundo..
[4] Traduzido do inglês: "Ser como uma mulher".
[5] Tradução do inglês: "Aqueles que transformam".
[6] Traduzido do inglês: Ilha da Tartaruga é um nome para Terra ou América do Norte, usado por alguns povos indígenas no Canadá e nos Estados Unidos, bem como por alguns ativistas dos direitos indígenas. O nome é baseado em uma história comum da criação indígena norte-americana.
https://www.britannica.com/topic/sodomy
https://www.britannica.com/topic/berdache
https://www.youtube.com/watch?v=A4lBibGzUnE
https://www.youtube.com/watch?v=juzpocOX5ik
https://www.instagram.com/tv/CKpYmEMHk1h/?hl=pt-br
https://revistahibrida.com.br/2020/04/19/como-a-colonizacao-tentou-apagar-as-sexualidades-indigenas-no-brasil/
https://en.wikipedia.org/wiki/Turtle_Island_(Native_American_folklore)
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