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Luca Corazza

Um ensaio sobre o Bixiga: a redescoberta da dimensão local

Atualizado: 14 de ago. de 2022


Vista do Centro a partir do mirante da Rua dos Ingleses, c. 1925


Localizado na região central da cidade de São Paulo, o Bixiga, como é afetuosamente conhecido, é um bairro consolidado e com vasta contribuição para a formação da capital paulista, sendo, durante a década de 1950, a localidade mais densamente povoada do município. A produção cultural, devido à diversidade de sua população, que migrou para a área durante a consolidação do território foi determinante para a formação das múltiplas identidades hoje pertencentes ao local. O nome formal designado à região no qual o Bixiga se encontra, Bela Vista, por sua vez, está provavelmente ligado ao incrível panorama geral da cidade dado pela região ou, mais especificamente, à vista do mirante da Rua dos Ingleses.

A preocupação urbanística com o bairro foi evidente na segunda metade do século XX. As diretrizes foram centradas na coerência das quadras bem horizontalizadas, além do tombamento de edifícios na Rua dos Ingleses, para a preservação da “Bela Vista” e o tombamento de vários edifícios. Com a febre dos teatros com grandes filas às portas, ademais, a década de 1950 também marcou a primavera de equipamentos culturais na região. Em 1954, Maria Della Costa, junto a Sandro Polloni, abriram o Teatro Maria Della Costa na Rua Paim, definindo o Bixiga como a “Broadway paulistana''. Por consequência, multiplicaram-se as cantinas, boates e cinemas de rua, reforçando a cultura que até então já constituía a região. Mesmo com a repressão da ditadura civil-militar, as décadas seguintes marcaram um período de exuberante frutificação intelectual e artística, radiante até os anos 1990.

Dada a largura das ruas, que não permitiam mão dupla, o trânsito na região se deu por muito tempo via bonde, num percurso que ligava o Largo dos Piques até a Av. Brigadeiro Luís Antônio. A racionalização dos transportes, a reorganização dos fluxos e a circulação de tráfego na área central do município de São Paulo, diagnosticados como problemáticos, transformou o Centro em uma passagem dos sistemas de transporte. Então, aquela gente que passava pelo Centro, para ir de um lado para o outro pegar condução, aquela massa popular, por vezes, nada tem a ver com o Centro. Com isso, a população tida como local do Centro sai prejudicada.

Tal impacto sobre sua ocupação abre debate para o argumento de que as classes sociais mais baixas tendem a fazer uma ocupação apenas de espaços urbanos residuais (como lotes vazios e edifícios não ocupados). Nos tempos de hoje, a cidade grande é um espaço no qual os pobres podem apenas subsistir. Mas é justamente a presença dos cidadãos marginalizados que aumenta e enriquece a diversidade socioespacial, que se manifesta tanto pela produção da materialidade em bairros e sítios tão contrastantes, quanto pelas formas de trabalho e de vida, possibilitando vias de intersubjetividade e da interação. É por aí que a cidade encontra o seu caminho para o futuro. Por serem "diferentes", os pobres abrem um novo debate com as populações e as culturas já presentes. É assim que esses espaços encontram novos usos e finalidades, revalidando objetos e técnicas, além de novas articulações práticas e novas normas, na vida social e afetiva. As tendências que levaram à construção do espaço público, por muitas vezes, estão relacionadas ao próprio sucesso das lutas pela inclusão, que levou a uma forte reação de reconfiguração do espaço público urbano de forma a limitar a ameaça do poder social democrático ao poder dominante de interesses sociais e econômicos.


Ato contra a verticalização do Bixiga


Por incrível que pareça, as cidades atuais, sobretudo as metrópoles, produtos da globalização, não são menos individualizadas do que as cidades medievais: fortificadas, medrosas do inimigo exterior, protegidas por muralhas. São as nossas cidades que vêm se organizando por fragmentos fortificados, condomínios fechados e “espaços públicos privatizados”, mantidos sob constante vigilância.

Infelizmente, com a verticalização exacerbada dada pelo insaciável apetite do mercado imobiliário no final do século XX - e por conseguinte a gentrificação[1] - o panorama do Bixiga vem se perdendo nos níveis dos olhos da rua. Tais empreendimentos com tão pouca personalidade vem progressivamente transformando um território de múltiplas identidades em um ambiente estéril. Isto porque o urbanismo moderno, técnico, programático e sistêmico estabeleceu diretrizes congruentes com uma vontade política duvidosa, uma vez que gerida pela população detentora de poder e capital, sobretudo pelas grandes incorporadoras, que por vezes corrompem a esfera pública e corroem as proposições e as incorporam aos seus interesses (privados), advindo em medidas pseudo-públicas.

Incapazes de resolver suas demandas locais, os cidadãos passam a procurar supri-la nas promessas mercadologicamente apresentadas pela agenda urbanística da atualidade que, pautadas no desejo de segurança, se confunde com o isolamento e com a suspeita crescente com relação ao “outro” e ao “diferente”. Nada de mistura nem de aproximações. Somente os muros e os condomínios fechados podem, nessa perspectiva, resolver o problema das pessoas e, em nome do conforto, da segurança e do lucro, a atividade política é substituída por espaços altamente mercantilizados como o shopping. Desde que se tenha dinheiro, proliferam-se os espaços “pseudo-públicos”. Esses espaços estreitam a lista de pessoas aptas a formar "o público”, excluindo os indivíduos indesejáveis. Dessa forma, grande parte da população é extraditada para um reino fora da política, uma vez que foram banidos dos locais de encontro da cidade.

Para nós, o público é a aparência: aquilo que é visto e ouvido pelos outros e por nós mesmos constitui a realidade. Sem os espaços públicos, os homens tornam-se seres inteiramente privados, isto é, privados de ver e ouvir os outros e privados de serem vistos e ouvidos por eles. São todos prisioneiros da subjetividade de sua própria existência singular. De fato, os espaços abertos muitas vezes compartilham características com os espaços pseudo-públicos: restrições de comportamento e atividades são tidas como certas, sinais proeminentes designam usos apropriados e descrevem regras que governam onde se pode caminhar, andar ou se reunir. Estes são espaços altamente regulamentados.


Mapa com teatros e cortiços na região do Bixiga

Fonte: Produzido por Corazza, L. D; Nogueira, C. M.


Na contemporaneidade, sem pertencimento, a cidade falhou ao resumir sua essência ao técnico e objetivo. A ideia moderna do exercício do urbanismo como uma disciplina heroóica, fortemente programática, extingue a reintrodução do desejo na realidade cotidiana como "ferramenta" de fuga ao planejamento urbano convencional. A democracia de massa do Estado de bem-estar social produziu a categoria paradoxal do 'ser humano privado socializado’, que comumente chamamos de 'cliente', que se fundiu com o papel do cidadão do Estado, na medida em que se universalizou socialmente. Nossa relação atual com a crise da cidade é profundamente ambígua: ainda culpamos os outros por uma situação pela qual tanto nosso utopismo incurável quanto nosso desprezo são responsáveis.

Em virtude disso, se antes nossa relação com o espaço era local-local, agora é local-global, ou seja, justificando a supressão das culturas regionais em função de um mundo globalizado com suas dinâmicas pautadas diretamente no capital. Tendo isso em mente, a memória coletiva é apontada como um cimento indispensável à sobrevivência das sociedades, o elemento de coesão garantidor da permanência e da elaboração do futuro, que comanda as ações do presente. Só a existência de uma esfera pública deve transcender a duração de nossa vida tanto no passado quanto no futuro, restabelecendo os laços sociais e a sociabilidade entre os indivíduos e grupos sociais que identificam as mesmas ressonâncias históricas de um passado comum. Apenas o desenho a partir da decomposição permitirá o estabelecimento de "zonas de liberdade", pondo fim às torturas inerentes à vida urbana – o atrito entre o programa e seus obstáculos (KOOLHAAS, 1990, p. 32).


“Se existe um ‘novo urbanismo’, ele não será baseado num estado de incerteza; ele não estará mais preocupado com o arranjo de objetos mais ou menos permanentes, mas com a irrigação de territórios com potencial; não terá mais como alvo configurações estáveis, mas a criação de campos capazes de acomodar processos que se negam a cristalizar-se em formas definitivas; não será mais sobre definições meticulosas, imposição de limites, sobre separar e identificar entidades, mas sobre descobrir híbridos inomináveis; não será mais obcecado pela cidade, mas pela manipulação de infraestrutura para intensificação e diversificação infinitas, atalhos e redistribuições — a reinvenção do espaço psicológico. (...) Como está fora do nosso controle, o urbano está prestes a se tornar o vetor máximo da imaginação. “

-Rem Koolhaas, 1994, p.3.


A arquitetura deve atravessar o tempo: passado e futuro, criando um ecossistema favorável à imaginabilidade e à dinâmica de desejos: um cenário de acontecimentos para as mais múltiplas situações, onde a experiência é valorizada e o sujeito é redescoberto; na restauração de todas as funções perdidas da cidade. Como bem colocado por Milton Santos, a "redescoberta da dimensão local".



Referencial Teórico:

ARENDT, Hannah. O Domínio Público: o comum. In A Condição Humana. Rio de Janeiro: Florence Universitária, 2013. (p. 61-71).BAUMAN, Zygmunt. Confiança e medo na cidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.

FRÚGOLI JUNIOR, Heitor. Centralidade em São Paulo: trajetórias, conflitos e negociações na metrópole. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2000.

HABERMAS, Jurgen. Mudança Estrutural da Esfera Pública: investigação sobre uma categoria da sociedade burguesa. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista. 2014.

HARVEY, David. O Direito à Cidade. In. Revista Piauí, edição 82, julho 2013.

KOOLHAAS, Rem. O que aconteceu com o Urbanismo? In. Revista Online do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Brasil ano I - no. 1, 2017.

KOOLHAAS, Rem. Theoretical Architectural Work. In. Urban Projects (1985-1990). Barcelona: Quaderns d'Arquitectura i Urbanisme, 1990. (p.54-63).

KOOLHAAS, Rem. Void and Full. In. Urban Projects (1985-1990). Barcelona: Quaderns d'Arquitectura i Urbanisme, 1990. (p.32-33).

LIMA DE TOLEDO, Benedito. São Paulo: três cidades em um século. 2.ed. São Paulo: Cosac Naify; Duas Cidades, 2004.

MITCHELL, Don. Public Space in the Contemporary City. In. The Right to the City: social justice and the fight for public space. 2.ed. Nova Iorque: The Guilford Press, 2003. (p. 137-147).

SACCHETTO, João. Bixiga: Pingos nos Is. São Paulo: Lemos Editorial, 2001.

SANTOS, Milton. A Força do Lugar: o lugar e o cotidiano. In. Natureza do Espaço: técnica, tempo, razão e emoção. 4.ed. 2. reimpr. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006.

[1] gentrificação: ação que consiste no restabelecimento do setor imobiliário degradado que, constituído pela restauração ou revigoração de imóveis, faz com que esses lugares, supostamente populares, sejam enobrecidos.

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