No ano de 2022, o jornalista e podcaster Chico Felitti - que até então era conhecido pelo grande público pelo audiodocumentário de sucesso “A mulher da casa abandonada” - iniciou a busca por mais uma história para entrar na categoria de hit dentro e fora das plataformas de reprodução. O podcast que marcou a produção de Felitti no início desse ano se chama “O Ateliê”, que começou a ser veiculado em Janeiro de 2023 e tem data prevista para encerrar com o seu décimo e último episódio na segunda semana de Março. Ali, Chico, junto à produtora e apresentadora Beatriz Trevisan, narram a trajetória pessoal de Mirela Cabral, que afirma ter vivido uma série de abusos físicos e psicológicos executados pelo professor e dono do Conglomerado Ateliê do Centro, Rubens Espírito Santo.
Ao longo do podcast, o Ateliê do Centro se apresenta como um espaço muito confuso em método. Não se coloca enquanto uma escola de artes plásticas, ou artes performáticas, ou de estudos filosóficos; na verdade, Rubens tem dificuldade até mesmo de chamar o espaço de escola. Essa e outras falas do artista vêm carregadas de um intelectualismo vazio, como revela o episódio 9, o ápice da obra de Chico, quando ele e Beatriz vão até o ateliê para entrevistar o “mestre” após todo um processo de pesquisa a respeito de sua vida, bem como uma série de conversas com “ex-discípulos” que, junto a Mirela, reforçam as bizarrices e abusos cometidos pelo mesmo.
A oposição “mestre-discípulo” é reforçada pelos entrevistados e, ao que tudo indica, assumida por Rubens no trato diário com seus alunos. Esse fato leva a uma operação perigosa que torna a análise dos fenômenos daquele ambiente muito ambíguas e complexas. O “mestre” nunca nega que cometeu os atos que Chico apresenta nesse mesmo penúltimo episódio. Afirma que todos eram adultos e possuíam livre-arbítrio para decidir fazer ou não aquilo que era sugerido. As proposições - que iam de puxões de cabelo mediante atraso, até tatuagem, marcas corporais e atos sexuais não consensuais - eram tratadas como parte do “método”, que é constantemente citado para embasar aquilo que ocorre dentro do Ateliê - na verdade, é mais um fragmento da personalidade prolixa de sua liderança, que coloca seu suposto conhecimento acadêmico à serviço de suas práticas autoritárias.
Hoje, o Conglomerado se encontra fechado temporariamente, pois está sendo investigado na justiça. Com o tempo, histórias dentro e fora do podcast suportam os argumentos de Mirela, que até agora não assistiu à condenação de Rubens. É digno de destaque o espaço dispensado na obra de Chico para tratar da burocracia que se desenrolou no ato de fazer o boletim de ocorrência em uma delegacia da mulher. O podcaster nunca deixa de posicionar que os acontecimentos de Mirela e de outras discípulas eram atos de misoginia e que, apesar de discípulos homens terem sofrido abusos, os grandes alvos e vítimas dos atos de Rubens eram e continuam sendo contra mulheres.
Em 5 de Janeiro de 2023, após o lançamento do primeiro episódio da série de podcasts, Rubens soltou uma nota nas redes sociais do ateliê comunicando a suspensão das atividades. No post assumia: “eu peço minhas sinceras desculpas pelos eventuais excessos, mesmo que consentidos, que tenham ocorrido em nossa relação” (FACEBOOK, 2023). O caso ainda não se esgotou e, por isso, abre margem para pensar no material composto por Chico enquanto uma fonte em movimento. Um pedaço de história que ainda está fresca demais para ser destrinchada como um documento de denúncia num jornal do século XIX, mas que já merece um olhar criterioso de quem o ouviu.
Há que se fazer algumas ressalvas. É quase impossível evitar o uso da primeira pessoa no presente artigo, visto que nos próximos parágrafos há a percepção pessoal de quem o ouviu. Além disso, é preciso posicionar meu lado de historiador que, às vezes, pode rivalizar com a visão de informação que Chico expressa. E, longe disso, ser um ataque ao trabalho de jornalistas, que são linha de frente em um momento de tanta desinformação. É louvável o papel do autor de “O ateliê” que, na medida em que garimpa novas histórias, ajuda a própria justiça a encontrar soluções para atos criminosos que não estão em evidência.
Nos primeiros episódios de “O Ateliê”, a experiência se alastrava pelos meus dias. Pensava no banho, no metrô e antes de dormir quem, afinal, era Rubens e o que ele tinha feito para Mirela. O meu interesse enquanto consumidor de histórias de suspense me fez ver Chico como um excepcional storyteller[1], alguém que caprichava na dramaticidade do som, na adjetivação e na organização dos fatos para tecer um podcast que me gerou interesse e suspense até seu último episódio. Acabei passeando por outros materiais de Chico e percebi que “O Ateliê” não era exceção: toda a sua obra é pautada por grandes personagens, que beiram a ficção em alguns momentos, grandes construções espaciais - quase todas em São Paulo, diga-se de passagem, o que pinta um quadro muito urbano de suas descrições -, assim como grandes consequências. O trabalho de Chico contribuiu para o entendimento da figura de João de Deus, o líder messiânico acusado de estupro, por exemplo.
A questão que deve ser levantada é: até que ponto o jeito de narrar de Chico não compromete a avaliação do consumidor de seu conteúdo? Enquanto trabalho jornalístico, ele parte do pressuposto de que existe uma verdade factual a ser revelada. Quando se tem isso em mente, passa a caminhar pelo esburacado caminho das declarações orais, que merecem um trabalho extremamente cauteloso. Além disso, em se tratando de uma investigação em curso, gera-se uma expectativa do “mundo” externo ao do audiodocumentário, que pode culminar no medo de exposição de ex-discípulas e ex-discípulos que ainda estão passando por um processo de desencanto do Ateliê, assim como Mirela passou. Tratar desses fatos e divulgá-los com uma roupagem feita para instigar e emocionar o ouvinte pode ser um caminho perigoso.
Torno a ressaltar o profissionalismo de Chico e Beatriz, que estiveram preocupados em não nomear aqueles que não o consentiram, e nem mesmo dizer o nome de Mirela ou algo a respeito da investigação para Rubens quando ele concede a entrevista. Só que, por maior que esse cuidado seja, vale o questionamento da intenção por trás do sucesso do formato, de sua veiculação na mídia e os desdobramentos da investigação.
Isso posto, ressalta-se o desejo de justiça para Mirela e todas as vítimas do Ateliê, bem como a incriminação da perversa, abusiva, traumática e controladora forma pela qual Rubens Espírito Santo acreditava educar suas alunas e alunos.
[1] Storyteller é um termo-síntese em inglês para “contador de histórias”. Ele designa quem faz de seu ofício o ato de narrar se aproveitando de recursos da linguagem e da teatralidade para comunicar um evento real ou fantástico.
Referências bibliográficas
O ATELIÊ, podcast, Chico Felitti, 2023, Pachorra Felitti.
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