Em nossa sociedade contemporânea, a violência atua como meio de dominação. Somos condicionados desde o nascimento a seguir os fundamentos de uma sociedade patriarcal[1], a qual determina o papel “ideal” de cada um. Dentro das noções construídas historicamente, está a dominação-exploração das mulheres pelos homens, os quais são tidos como detentores de poder. Tendo em vista essa realidade, vamos refletir sobre a violência contra as mulheres, pensando em como a sociedade age, mesmo que inconscientemente, como vigilante e cumplice dessa. Tendo como principal base teórica a obra Gênero Patriarcado Violência (Figura 1) da socióloga Heleieth Saffioti, também será mencionado alguns conceitos e autoras para examinar tanto sobre a realidade das mulheres quanto em caminhos para uma solução e superação da violência patriarcal.
Primeiramente, para a compreensão do conceito de violência contra as mulheres como uma ruptura de qualquer forma de integridade da vítima, devemos perceber que essa pode ser considerada, como subjetiva, pois, um mesmo fenômeno pode ser considerado normal para uma enquanto para outra é visto como agressivo. A percepção do uso da palavra vítima pode nos indicar alguns aspectos dessa violência, visto que as mulheres são treinadas para sentir culpa, mesmo quando não há razões para assumirem tal condição. Nesta civilização da culpa para as mulheres[2], ou seja, na sociedade contemporânea patriarcal, aqueles que detém o poder são os homens – brancos, cis e de preferência heterossexuais – e todos são condicionados a exercerem determinados papeis construídos previamente, onde o homem deve agir como caçador e a mulher como a caça. Aqueles que não se encaixam nesses condicionamentos sociais são mais suscetíveis a serem atravessados por uma violência multifacetada, como veremos mais adiante.
Em termos de vigilância, o dispositivo panóptico, conceito forjado pelo filósofo francês Michel Foucault (1975), em seu livro Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão, corresponde à descrição do modelo de cárcere Panóptico de Jeremy Bentham (1791), que se fundamenta no “princípio da inspeção”. O projeto remete a um edifício circular, com as portas das celas voltadas para o centro e no meio haveria uma torre alta capaz de enxergar toda a prisão. Na torre, seria necessário apenas um guarda para vigiar os prisioneiros, já que estes não conseguem enxergar o guarda e, assim, não saberiam em que momento estariam sendo observados. Com essa visão que alcança todos, ou fornece essa sensação, há uma internalização da vigilância que priva a individualidade, onde o indivíduo ao mesmo tempo que vigia também se sente vigiado. Ao estudar a violência nas prisões, Foucault (1975) se refere ao modelo como um “dispositivo” com uma dupla utilidade: a de observatório e a de laboratório de poder, pois, ao mesmo tempo que automatiza, o dispositivo retira o caráter individual do poder. Outros pensadores elaboraram seus próprios raciocínios a partir desse conceito para enxergar a sociedade por outras chaves, como é o caso de Heleieth Saffioti. A autora aplica esse dispositivo à vigilância exercida sobre as mulheres, já que suas condutas são vigiadas sem cessar, mesmo sem que elas tenham essa consciência, deste modo, funciona como um “[...] controle social poderoso, pois a introjeção das normas sociais por mulheres funciona como um panóptico.” (SAFFIOTI, 2015, p. 43).
Em nossa sociedade, a violência contra as mulheres está colocada como algo “naturalizado”, é esperado dos homens que convertam sua agressividade em agressão, embora esta também os prejudique. Interessante notar que, enquanto as mulheres sofrem ou conhecem outras mulheres vítimas de alguma forma violência de gênero, poucas vezes os homens são capazes de reconhecer a culpa própria ou a dos outros homens envolvidos. Não há uma responsabilização pelos atos, que muitas vezes são criminosos. Há, também, uma certa cumplicidade em relação à violência, principalmente a doméstica, já que mesmo sendo percebida por externos, o silêncio é predominante, como veremos adiante. Quando acrescentamos a esta reflexão a noção de poder, este pode apresentar duas faces: “(...) a da potência e a da impotência. As mulheres são socializadas para conviver com a impotência; os homens – sempre vinculados à força – são preparados para o exercício do poder. Convivem mal com a impotência” (SAFFIOTI, 2015, p. 89). Saffioti acredita que seja nos momentos da impotência que os homens praticam atos violentos, usando como exemplo os períodos de desemprego já que o homem, condicionado a ser o provedor da casa, perde essa estabilidade e, nessa vivência de impotência, acaba convertendo sua falta de poder em violência contra sua companheira.
A maior parte da violência contra as mulheres tem lugar no interior das relações afetivas: violência doméstica e violência intrafamiliar. A pesquisa recente do Instituto Patrícia Galvão com o Ipec “Redes de apoio e saídas institucionais para mulheres em situação de violência doméstica no Brasil” revela que 60% dos entrevistados conhecem pessoalmente ao menos uma vítima de violência doméstica e que 36% das mulheres ouvidas sofreram algum tipo de agressão do companheiro. Já em uma pesquisa de 2020 do mesmo instituto, foi notado um aumento de 87% da violência doméstica durante a pandemia de Covid-19. Interessante perceber que nas pesquisas realizadas, a maioria dos homens (94%) alega não ter praticado nenhum tipo de violência contra suas companheiras, enquanto mais da metade das entrevistadas afirmaram conhecer uma vítima ou ter sofrido algum tipo violência no âmbito doméstico, ou seja, as contas não fecham e a cumplicidade para esse tipo de opressão permanece. Tendo em vista esses dados, as mulheres vinculadas nessas relações – sendo codependentes[4] – geralmente necessitam de intervenção externa para que consigam sair definitivamente deste ciclo da violência. Embora presas às relações abusivas, elas não são de maneira alguma passivas às hostilidades que sofrem, criando estratégias de sobrevivência multifacetárias.
Mas quando se fala sobre violência contra as mulheres, quem são estas? Elas sofrem uma mesma opressão? Há como as colocar em uma só categoria mulher? Com os esforços imensuráveis das feministas negras, hoje temos como um fato de que não é possível existir uma categoria “mulher”, que há diferentes graus de opressão que atravessaram as mulheres negras e que hoje conseguimos percebê-las e combate-las. Gloria Jean Watkins, conhecida pelo pseudônimo bell hooks, foi uma professora, teórica feminista e ativista antirracista estadunidense, que escreveu obras fundamentais e acessíveis sobre o feminismo. Em Teoria feminista: da margem ao centro (Figura 2), publicado nos Estados Unidos em 1984, mas no Brasil apenas em 2019, defendeu uma revolução feminista, partindo da teoria e da prática, com políticas para enfrentar o sexismo, o racismo e o capitalismo, já que as formas de opressão estão ligadas na sociedade e desafiar uma é desafiar todas. Assim, bell hooks constrói uma teoria voltada para os movimentos de massa, que estão a margem, sob uma perspectiva feminista, de gênero. Logo no primeiro capítulo, intitulado “Mulheres Negras: Moldando a Teoria Feminista”, a autora explicita como o erro de se pensar apenas na categoria gênero, já que as mulheres negras[5] carregam fardos que se entrecruzam: o da opressões sexista, racista e de classe, devendo ser delas que a teoria deve partir. “Uma vez que todas as formas de opressão estão ligadas em nossa sociedade, um sistema não pode ser erradicado enquanto os outros permanecem intactos. Desafiar a opressão sexista é um passo crucial na luta pela eliminação de todas as formas de opressão.” (HOOKS, 2019, p. 70).
“(...) qualquer que seja a profundidade da dominação-exploração da categoria mulheres pela dos homens, a natureza do patriarcado continua a mesma!” (SAFFIOTI, 2015, p. 114), com tal afirmação, há caminhos possíveis para o fim da violência contra as mulheres?
Uma concordância entre as autoras aqui discutidas é a de que, para o fim da opressão dos homens contra as mulheres, faz-se necessário a destruição de todas as formas de opressão. No texto, destaco a de gênero, porém devemos ter consciência que os indivíduos são atravessados por diversos tipos de violência, como as de classe e as de raça, assim, não podemos pensar em lutar contra um único tipo de opressão, já que são interligados e multifacetários. A teórica feminista estadunidense Kimberlé Williams Crenshaw, cunha o conceito interseccionalidade, para definir essas formas entrelaçadas de opressão, defendendo um olhar para esse entrecruzamento de opressões, sem uma sobreposição e hierarquia das mesmas.
Deste modo, na sociedade patriarcal, onde há uma cultura de dominação, os indivíduos são socializados para enxergar a violência como um meio legítimo de controle. Enquanto essa pedagogia da violência vigorar, a “dominação-exploração da categoria mulheres pela dos homens” (SAFIOTTI, 2015, p. 114), em conjunto com outras formas de opressão, seguirá fazendo vítimas diárias em prol da manutenção de poder da ordem social patriarcal – branca, cis e de preferência heterossexual.
[1] Sobre o conceito de patriarcado, utilizado na obra de Heleieth Saffioti, esse pode ser pensado através da historiadora austríaca da Antiga Mesopotâmia, Gerda Lerner (1986), em sua obra fundamental A criação do patriarcado: história da opressão das mulheres pelos homens, onde tenta traçar o desenvolvimento histórico das principais ideias/símbolos/metáforas pelas quais as relações patriarcais antigas de gênero foram incorporadas na civilização Ocidental. Sua definição mais geral de Patriarcado corresponde a um sistema, institucionalizado, da dominação masculina sobre as mulheres, na família e na sociedade em geral, podendo manifestar-se, historicamente, de várias formas e maneiras.
[2] Obviamente, embora seja mais fácil para as mulheres assumirem o papel de vítima, elas nem sempre o são. Há aquelas que provocam os parceiros, partindo para a violência física ou moral, já outras espancam seus filhos, sendo esse ato, chamado por Saffioti, uma síndrome do pequeno poder. Afinal, como estão inseridas na Sociedade Patriarcal, elas cooperam com as engrenagens do sistema, mesmo que inconscientemente, para a perpetuação do regime.
[3] Heleieth Saffioti, percebendo que a maior parte da violência de gênero têm lugar nas relações afetivas, faz uso do conceito de codependência, onde as mulheres acabam, para manter uma sensação de segurança ontológica, presas nessas relações para definir suas carências.
[4] Ao longo deste capítulo e de toda obra, hooks explica que as feministas brancas de classe média, munidas por estereótipos racistas sobre as mulheres negras – como o de uma força sobre-humana – ignoravam às opressões sofridas por estas pela sociedade e esquecem, também, o papel que tinham/tem na manutenção e perpetuação do regime patriarcal. É mais fácil focar exclusivamente na questão de gênero, quando não se sofre opressões de classe e de raça. O uso da ideia de uma “opressão comum” serviu como uma manipulação e apropriação de um vocabulário político, por parte das mulheres liberais e conservadoras para colocarem seus interesses no centro das discussões, em outras palavras, essa falsa solidariedade mascarava os seus privilégios de raça e classe social, que não condizem com a realidade e os interesses das mulheres trabalhadoras. Assim, a formação de uma teoria feminista libertadora deve vir da margem, pelas mulheres negras que foram e continuam sendo usurpadas de muitas formas pelo centro.
Referências Bibliográficas
BARROS, Eliane. Pesquisa Redes de apoio e saídas institucionais para mulheres em situação de violência doméstica. Agência Patrícia Galvão, 2022. Disponível em: <https://agenciapatriciagalvao.org.br/violencia/violencia-domestica/metade-dos-brasileiros-conhece-ao-menos-uma-mulher-que-sofre-violencia-domestica-denunciar-a-policia-ou-terminar-a-relacao-sao-os-principais-conselhos-a-vitima/>. Acesso em: 08 abr. 2023.
BARROS, Eliane. Pesquisa Violência doméstica contra a mulher na pandemia. Agência Patrícia Galvão, 2022. Disponível em: < https://agenciapatriciagalvao.org.br/violencia/violencia-domestica/nova-pesquisa-para-87-dos-brasileiros-a-violencia-contra-mulheres-aumentou-na-pandemia/>. Acesso em: 08 abr. 2023.
CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Revista Estudos Feministas, [S.L.], v. 10, n. 11, p. 171-188, jan. 2002. FapUNIFESP (SciELO). http://dx.doi.org/10.1590/s0104-026x2002000100011.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Lisboa: Edições 70, 2013. Introdução de: António Fernando Cascais.
HOOKS, bell. O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras. Rio de
Janeiro: Rosa dos Tempos, 2021.
___________. Teoria feminista: da margem ao centro. São Paulo: Perspectiva, 2019. Tradução de: Rainer Patriota.
LERNER, Gerda. A criação do patriarcado: história da opressão das mulheres pelos homens. São Paulo: Cultrix, 2019. Prefácio de: Lola Aronovich.
SAFFIOTI, Heleieth. Gênero Patriarcado Violência. 2. ed. São Paulo: Expressão Popular: Fundação Perseu Abramo, 2015.
SCOTT, J. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade, [S. l.], v. 20, n. 2, 2017. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/educacaoerealidade/article/view/71721. Acesso em: 10 jul. 2022.
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