A obra 5664 Mulheres, de Beth Moysés (1960), que integra a exposição Tempos Fraturados do Museu de Arte Contemporânea da USP, constitui representação da bandeira nacional do Brasil, configurada a partir da utilização de 5664 cápsulas de bala, cuja composição não uniforme mescla projéteis desfigurados pelo impacto do disparo e projéteis mais conservados. As cápsulas mais impactadas e distorcidas possuem tom de cobre enferrujado e foram posicionadas com a parte inferior voltada para cima, configurando o losango que constitui a bandeira. Já as cápsulas mais conservadas, em tom mais próximo ao dourado, foram utilizadas para moldar o retângulo e o círculo que formam a bandeira, posicionadas na vertical, com a ponta para cima. Essa composição está disposta em uma plataforma superior, montada sobre uma caixa de vidro temperado 10mm, de proporções 15 cm x 110 cm x 80 cm, que guarda abaixo do arranjo dos projéteis um tule branco bordado com contas de vidro perolado, o qual pode ser visto na parte inferior da caixa e através da faixa central da bandeira, que restou não preenchida na obra.
O percurso artístico de Beth Moysés é marcado por um amplo acervo de obras que abordam e trabalham a questão da violência doméstica e de gênero, contemplando pautas relevantes ao movimento feminista. Nesse sentido, o trabalho da artista é caracterizado pela utilização de simbolismos, que remetem o espectador à estrutura patriarcal[1] da sociedade, como a composição de retalhos de tecidos brancos e vestidos de noivas, e a utilização de tons avermelhados, que, no contexto das obras, evidenciam a contraposição entre o significado social do casamento e a violência no ambiente doméstico. Além da obra em análise, esse aspecto pode ser também identificado nas obras Despierta (2010), Série Vestidos – Relatos (2010), El Plato de Mi Padre (2011), Memórias de Afeto (2000) e Macho e Fêmea (1994). Ao trazer objetos cotidianos para contrapor significados e denunciar a realidade das mulheres, a arte de Beth Moysés mescla o uso de diversos materiais, enfatizando o processo de construção e reflexão crítica que resulta nas obras: performances, fotografias, vídeos, instalações e objetos.
A obra 5664 Mulheres foi produzida em um contexto de intenso avanço e adensamento das lutas político-sociais vinculadas a questões de gênero no Brasil, de modo a verificar o desenvolvimento do ativismo feminista na arte, entre o século XX e o século XXI, sobretudo, no que diz respeito à violência de gênero. Integra-se a um conjunto de obras de artistas mulheres, que configuram manifestações políticas, como o trabalho de Dora Longo Bahia e Panmela Castro. Em meio a esse processo político, há uma maior aproximação entre a produção artística e os movimentos feministas, de forma que as obras passam a se preocupar em gerar reflexões e questionamentos acerca das mazelas da estrutura patriarcal.
Nesses termos, essa obra denuncia a violência doméstica contra as mulheres ao revelar dados estatísticos reais: a quantidade de cápsulas de bala faz referência ao número de feminicídios registrados no Brasil em 2013. A partir dela, a artista tece uma crítica à realidade brasileira, no que tange aos direitos das mulheres, haja vista que, além de representar o assasinato delas com balas disparadas, traz um tule branco, que faz remissão a um vestido de noiva, "sufocado" pelo significado dos projéteis: a violência extrema e a morte. A artista desloca os objetos do contexto ao qual comumente se inserem, atribuindo-lhes um novo significado; as balas, que representam na realidade cotidiana a violência e a opressão, e o tule, ligado à feminilidade, passam a ser utilizados como instrumento de protesto e reflexão, por meio do fazer artístico.
Desse modo, a obra contrapõe a delicadeza e a leveza do tecido perolado, vinculado à ideia de casamento como uma união fundamentada no amor, ao peso negativo das balas, que revelam a violência doméstica velada e abafada nos lares brasileiros. A obra ataca diretamente um Brasil que naturaliza a violência, asfixiando e matando suas mulheres, a partir de objetos que combinados comportam sentidos e produzem autonomamente efeitos nos espectadores que se relacionam com a obra – tais como indignação, revolta, tristeza, dor e solidariedade.
Tendo em vista a crítica extraída sobre as estruturas patriarcais de poder, que submetem as mulheres ao controle social imposto na esfera privada por seus companheiros até
o limite – o feminicídio, compreende-se que a obra 5664 Mulheres apresenta-se, para além de mera expressão estética, como um ato de manifestação política, mobilizando os espectadores para a transformação social relacionada às lutas feministas. No embate entre as simbologias trazidas, a obra assume função de protesto político e cultural, subvertendo o discurso ideológico que reprime e oprime as mulheres. Assim, dá-se visibilidade à luta das mulheres contra as violências escondidas estruturalmente, assumindo papel didático de conscientização do público.
Em suma, Beth Moysés apresenta verdadeiro manifesto artístico feminista na luta contra a violência de gênero, revelando a importância das artistas femininas para a arte de caráter político, na tomada de posição em relação a problemas estruturais de gênero e na denúncia desses.
Nota de Rodapé
[1] Estrutura social caracterizada pela prevalência de relações de poder e domínio dos homens sobre as mulheres, mediante inferiorização do gênero feminino.
Referências Bibliográficas
AMARAL, Aracy. Beth Moysés: Qual o poder da arte?, 2010. Disponível em: <http://www.canalcontemporaneo.art.br/quebra/archives/003564.html>
CANTON, Katia. Memória do afeto: da consolação ao paraíso. Disponível em: < http://bethmoyses.com.br/site/?page_id=3739>
COSTA, Maria Alice; COELHO, Naiara. A(r)tivismo Feminista – Intersecções entre arte, política e feminismo. In: Confluências - Revista Interdisciplinar de Sociologia e Direito. Vol. 20, nº 2, 2018. P. 25-49.
MOYSÉS, Elizabeth de Melo Camargo. Abrigo da memória. Campinas: 2004. -Dissertação de mestrado da artista pela UNICAMP.
PEDROSA, Mario. "Arte ambiental, arte pós-moderna, Hélio Oiticica", in: FIGUEIREDO, L., PAPE, Lygia, SALOMÃO, W. (orgs.). Aspiro ao grande labirinto. Rio de Janeiro: Rocco, 1986.
FREIRE, Cristina. Arte conceitual. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2006.
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